Renato
Barozzi Cassimiro
Solilóquios, monólogos e aforismos num boteco do Aterrado
O sujeito estava sentado, num canto do bar,
quando eu cheguei para buscar a Brahma de cada dia, que nos é dada
principalmente no domingo, bem gelada, vale ressaltar. Ao vê-lo, percebi sua
luta inglória em busca do equilíbrio. Tive vontade de rir, mas lembrei que eu
também ando de tempos em tempos na corda bamba que divide a razão do pé na
jaca. Resolvi tomar uma ali mesmo no balcão antes de encher a bolsa térmica, a
fim de observá-lo por mais alguns minutos, tamanha a curiosidade que me
despertou.
Ele entremeava seus devaneios contemplando o
nada. Apontava para o céu. Passava as duas mãos no rosto. Cruzava os dedos
sobre os joelhos sobrepostos. Às vezes, balançava a cabeça positivamente, como
se seu corpo estivesse a concordar ou consentir com seus pensamentos. Outras
vezes chacoalhava-a, numa repentina convulsão, mostrando dissidência e
descontentamento com os zumbidos que insistiam em habitar-lhe a mente. Nestas
horas, chegava a ponto de exibir caretas e trejeitos contorcidos. Talvez sua
alma doesse um pouco, ou seriam os primeiros sinais do arrependimento cortante
que faz a segunda-feira parecer um purgatório.
Assim, seguiu o extasiado com sua coreografia
particular, bamboleando, desgovernado, de um lado para o outro numa performance
de alto grau de dificuldade, demonstrando um desempenho atlético de bastante
flexibilidade, digno de um ginasta.
Não bastasse a efusão desta dança boemia com
seus grunhidos, gemidos, ruídos e contorcionismos, havia também um sinal de
vida inteligente que se expressava por meio de palavras, aforismos e algumas
tentativas de construir frases. Nestes momentos ficava claro o esforço do autor
em compreender e interpretar o ambiente – apesar de seus olhos insistirem em
fechar - além de sua vontade de interagir com os demais bebericadores, já que
seus sentidos clamavam por um interlocutor.
Eu, como já tinha passado a vista no jornal
logo de manhãzinha, resolvi me dedicar a boa ação e tentei um approach com o
solitário. Já no primeiro passo que dei em sua direção fui avisado pelo dono do
estabelecimento: Esse aí deve ter tomado umas doze doses da branquinha desde
que chegou. Desisti de chegar tão perto. Dei dois passos para trás, apoiei-me
no balcão com o calejado cotovelo e fiquei tentando, de longe, explorar a mente
daquele homem que persistia ditando seu monólogo conjuntural.
Meu esforço não foi em
vão. Qual um antropólogo diante de uma civilização não
conhecida ou como um Darwin em Galápagos, notei que os resmungos do ébrio
cidadão tinham uma concretude quase poética e uma profundidade não captada
pelos transeuntes – ou será que a lucidez me abandonou também? – Seja como for,
reproduzo abaixo as expressões altissonantes ou ditos sentenciosos do retinto
“caniano”, seguidas das minhas cambaleantes e combalidas interpretações naquele
póstumo domingo num bar no Aterrado.
É o bicho: manifestação ecoada no intuito de corroborar com a
exasperação coletiva dos dilemas morais, físicos, psicológicos, esportivos,
comportamentais, conjugais, financeiros, etc; proclamados pelos “coporreligionários”
presentes.
Deixa quieto: solicitação emitida quando o
bate papo despretensioso dava lugar a alcovitaria rasteira.
Não mexe com isso não: exclamação pronunciada
quando adentrava ao recinto alguma senhora a fim de adquirir algum produto ou
buscar o marido perdido.
Esse curto repertório, que
mais se assemelha a um tira gosto vocabular do que propriamente a uma refeição
completa, seguiu invariavelmente por umas duas horas. O solilóquio só foi
interrompido no instante em que surgiu à porta do boteco minha esposa. Naquele
exato instante, o poeta levantou os olhos em minha direção, esfregou uma mão na
outra, sorriu de soslaio e soltou o estrondoso verbete:
DEMOROOOOOOOOOOOOOUUUU!!!
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